02/03/2016

Mamonas, vinte anos depois



A primeira vez que ouvi falar nos Mamonas foi em outubro de 1995.

Era o aniversário do meu primo Rodrigo e ele ganhara um CD de presente — uma banda nova, com letras engraçadas, cheias de palavrões. "Sabão Crá-Crá" foi a que grudou mais rápido, talvez pela curta duração e o padrão "crá-cré-cri" fácil de memorizar. No dia seguinte, partimos para uma viagem para o rio São Francisco — eu, meu pai, o Rodrigo, o pai dele e o nosso avô —, onde acampamos numa prainha durante o feriado e, entre pescarias e campeonatos de piadas, ficamos cantando "Sabão Crá-Crá" até dizer chega.

Na semana seguinte, alguém apareceu com o CD numa aula de Educação Física e a coisa viralizou, numa época em que ninguém usava ainda a palavra "viralizar". Antes que outubro acabasse, os Mamonas já tinham virado coqueluche nacional: não só "Vira-Vira" e "Pelados em Santos" tocavam incessantemente na rádio, como até as canções mais "lado B" do disco faziam sucesso na TV, nas escolas, nos chopis centis e nas festinhas da quarta série. Sempre tinha aquele moleque que se gabava de ter "decorado todas as letras do disco" e recebia um olhar incrédulo: "Até a 'em inglês'?" — porque ninguém decorava "Débil Metal", dona de versos enigmáticos como "Dying to me now is popcorn" e "So, shake your head, sucker!". Quando perguntei à minha professora do Number One o que queria dizer "sucker", ela deu uma risada e desconversou.

Alguém aí estragou o seu encarte?

Mamonas Assassinas era um disco perfeito, do "top de quatro 'já vái'" que abria "1406" ao improviso à la Só Pra Contrariar que encerrava "Lá Vem o Alemão". Cada música tinha personalidade própria e mesclava o rock a um estilo específico, fado, forró, brega, pagode. Claro, éramos cabeças de bagre e não sacávamos muita coisa — e não falo apenas das referências sexuais (ninguém sabia muito bem por que "comer tatu" era bom, embora provocasse dor nas costas), como também dos nomes das músicas (pronunciávamos "1406" como "mil, quatrocentos e seis", sem fazer a óbvia conexão com os comerciais de facas Ginsu que diziam "catorze zero meia") e das inúmeras citações musicais (como Rush e Dream Theater em "Bois Don't Cry"). Até hoje, escutando esse disco tantos anos depois, ainda me impressiono com a criatividade e o talento dos caras.

A esse ponto, já tínhamos visto os Mamonas ao vivo trocentas vezes na TV — seja ocupando o Domingo Legal inteiro, ou vestidos de He-Man no Domingão do Faustão, ou cantando "Short Dick Man" no Programa Livre do Serginho Groismann. Mas chegou dezembro e, com ele, uma notícia very porreta: os Mamonas Assassinas tocariam ao vivo em Belo Horizonte.

O show seria, claro, no acusticamente precário Mineirinho (não que ligássemos pra isso). Um "acompanhante adulto" era necessário e minha tia Marilu foi a escolhida, levando eu, meu primo Bruno (ambos com 10 anos) e minha prima Paula (com 8). No carro, torrávamos a paciência dos adultos com versões mamônicas que substituíam a Brasília amarela pelo carro do meu tio: "O meu Vectra prateado… Tá de portas abertas…"


Algumas memórias avulsas da noite: a gente tentando adivinhar qual fantasia a banda usaria (apostamos nas Tartarugas Ninja, mas eles surgiram com roupas de coelho); a multidão lá embaixo fazendo chifrinho com a mão em "Bois Don't Cry"; Dinho com sua vestimenta pirotécnica que soltava fogo em "Pelados em Santos" e "Bois Don't Cry"; a máscara de jacaré em "Mundo Animal"; a peruca cabeluda em "Débil Metal"; a apresentação da banda, na qual o vocalista zoava os companheiros e se descrevia como "o lindo, maravilhoso, modesto… Dinho!";  o bis com uma música inédita, da qual não conseguimos entender uma palavra (só o Bruno, que afirmou ter ouvido um nítido "filho da puta"); e talvez o fato mais surpreendente da noite: a Paula dormindo (!) no meio do show. Ela já tinha cochilado no cinema quando fomos ver Mortal Kombat no BH Shopping, mas pegar no sono em pleno show dos Mamonas era demais.

Um mês depois, eu estava na casa do Bruno e da Paula quando o tio Ruy, pai dos dois, chegou de viagem perguntando: "Adivinha quem eu encontrei no avião?". "O time do Cruzeiro?", chutou a Paula. "O time do Galo?", arriscou o Bruno. E ele: "Não. Os Mamonas."

Dinho, meu tio (canto inferior direito) e amigos

Claro que passamos a noite interrogando meu tio sobre todos os detalhes do encontro, no qual ele e sua turma de amigos não apenas conheceram os Mamonas Assassinas como fizeram uma jam session no aeroporto, aproveitando que alguns traziam violões e cavaquinhos a tiracolo. Hoje tenho uma sogra alemã que conheceu os Beatles em Hamburgo — mas imagina ouvir aos 11 anos, em primeira mão, o relato de um parente que acabou de fazer farra com os seus ídolos?

"Quando tínhamos o grupo Tudo Bem no Ano Que Vem, viajávamos todo fim de ano pra praia. Encontramos com os Mamonas no Aeroporto de Congonhas, conversamos e um deles perguntou: 'Você conhece o Dinho?' Eu respondi: 'Não, e você conhece o Tadeu?' Ele disse: 'Também não.' Eu disse: 'A viagem pra Porto Seguro será uma ótima oportunidade'. Não deu outra. Zorra total no avião." - Ruy Barreiros, num depoimento exclusivo para os leitores do Biselho

Autógrafo dos Mamonas para meus primos Bruno e Paula

Aí veio o fatídico domingo, 2 de março de 1996.

Meu pai deu a notícia sem rodeios: "Sua avó acabou de ligar. Teve um acidente de avião com os Mamonas Assassinas. Morreu todo mundo."

A morte dos Mamonas não chocou apenas aquele moleque de 11 anos que havia perdido sua banda favorita da noite para o dia. Por meses a fio, os cinco garotos de Guarulhos não saíram da TV: descobrimos o passado de "banda séria" e malsucedida com o Utopia, vimos Mirela e Valéria duelando pelo posto de "verdadeira namorada de Dinho", ouvimos intermináveis discussões sobre o conteúdo da caixa preta do Learjet e das causas do acidente na Serra da Cantareira. Produtos mamônicos surgiram aos borbotões, do álbum de figurinhas ("180 cromos autocolantes da hora!") a uma biografia assinada por Eduardo Bueno. Esse livro, particularmente, era um barato, cheio de casos divertidos sobre os primórdios da banda e detalhes sobre o eternamente inédito segundo disco dos Mamonas, Blá, Blá, Blá — que traria canções como "Chamada a Cobrar", "Renato, o Gaúcho", "Bate, Mãe", "Primo Pitonho" e outros futuros sucessos.


Ou seriam mesmo sucessos? Só nos resta conjecturar. Blá, Blá, Blá poderia ter sido um fenômeno ainda maior que o disco de estreia, com uma banda no auge de sua criatividade fazendo o que sabia fazer melhor (como dizia uma declaração de Dinho na época, "Temos besteiras para mais quinze discos"). Também poderia muito bem ter sido um fiasco, uma piada requentada que deixaria o grupo no ostracismo. Quem sabe, em certo ponto da carreira, eles optassem por uma ruptura no estilo, deixando o humor de lado para ousar de outras formas. Talvez Dinho se embrenhasse numa carreira solo, tornando-se ator, comediante, apresentador de TV. Ou talvez eles sumissem por duas décadas e voltassem numa turnê de reunião, onde estaríamos todos lá, nostálgicos, fazendo chifrinho com a mão e cantando "Mamona-na-nas, Mamona-na-nas…"

Em vez disso, ficamos com as memórias de um grupo que apareceu do nada, fez História e deixou órfã uma geração inteira. Dinho, Júlio, Bento, Sérgio e Samuel — vinte anos depois, vocês ainda fazem falta.

Quem

Lucas Paio já foi campeão mineiro de aviões de papel, tocou teclado em uma banda cover de Bon Jovi, vestiu-se de ET e ninja num programa de tevê, usou nariz de palhaço no trânsito, comeu gafanhotos na China, foi um rebelde do Distrito 8 no último Jogos Vorazes e um dia já soube o nome de todas as cidades do Acre de cor, mas essas coisas a gente esquece com a idade.

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